Conceitos que permeiam a noção de cocriação no setor público: definições e relações

A Nova Gestão Pública surge com a proposta de tornar o serviço público mais eficiente e orientado à satisfação do usuário, modificando a centralidade da autoridade legal, característica do paradigma Burocrático. Porém, esse modelo oferece uma cura unilateral. Além de reduzir os múltiplos propósitos do setor público a um excessivo foco em eficiência, a pluralidade de atores capazes de contribuir para o aperfeiçoamento dos serviços públicos e para a solução de problemas complexos é pouco considerada em função de uma ênfase à importância dos gestores públicos (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016).

Diante de tal limitação, passam a emergir diferentes conceitos relacionados à colaboração no setor público, dentre eles cocriação, coprodução, inovação social e governança colaborativa. Estes conceitos apresentam pontos de convergência, mas também peculiaridades, sendo as relações entre eles nem sempre bem compreendidas. Torfing; Sørensen e Røiseland (2016) discutem, sob a perspectiva da Nova Governança Pública, a transformação do setor público em uma arena de cocriação. Ao mesmo tempo em que os autores trazem à tona barreiras, indutores, benefícios e desafios relacionados à implementação da cocriação, também apresentam uma explicação clara sobre os elementos centrais desses diversos conceitos. Com o objetivo de contribuir para a melhor compreensão das relações conceituais entre cocriação, coprodução, inovação social e governança colaborativa, este texto procura sistematizar e sintetizar as explicações encontradas em Torfing; Sørensen e Røiseland (2016).

Cocriação

A noção de cocriação foi desenvolvida inicialmente no setor privado, com o objetivo de compreender como os clientes podem contribuir para a criação do serviço que estão adquirindo (LUSCH; VARGO, 2006). Posteriormente, o conceito foi inserido no setor público. Conforme observado por Osborne, Radnor e Nasi (2013), esse contexto oferece excelente condições para cocriação, na medida em que é composto por serviços com processos simultâneos de produção e consumo, em que o usuário tem naturalmente um papel central (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016). Provedores e usuários de serviços públicos reúnem diferentes recursos e capacidades na criação conjunta de valor do serviço em questão e com interesse de ambas as partes em maximizar a criação de valor público (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016).

A cocriação no setor público pode ser compreendida como um processo pelo qual duas ou mais entidades e atores de naturezas distintas tentam resolver um problema, desafio ou tarefa compartilhada por meio de uma troca construtiva de diferentes tipos de conhecimento, recursos, competências e ideias. Essas trocas aumentam a produção de valor público em termos de visões, planos, políticas, estratégias, estruturas regulatórias ou serviços, seja através de uma melhoria contínua de produtos ou resultados ou através de mudanças inovadoras que transformam a compreensão do problema ou tarefa em mãos e levar a novas maneiras de resolvê-la (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016).

É frequente o uso de “cocriação” com o mesmo significado de “coprodução”. Alguns estudiosos ampliaram a noção de coprodução para cobrir uma ampla variedade de fenômenos, como coplanejamento, cogestão, codesign e coentrega (BOVAIRD; LOEFFLER, 2012), mas Torfing; Sørensen e Røiseland (2016) explicam que são estratégias conceituais diferentes.

Coprodução

No sentido estrito do termo, coprodução no setor público refere-se ao processo interativo por meio do qual os provedores e usuários de serviços públicos aplicam seus diferentes recursos e capacidades na produção e entrega (LUSCH; VARGO, 2006). Para Torfing; Sørensen e Røiseland (2016), as diferenças conceituais entre os termos estão relacionadas ao fato de que na coprodução os participantes são restritos a dois tipos de atores: os prestadores e os usuários dos serviços públicos, excluindo a gama mais ampla de atores públicos e privados que também desempenham um papel crucial na solução de problemas e serviços públicos.

Além disso, quando comparado com cocriação, o foco do termo está no trabalho conjunto para produção de serviços específicos, em vez da criação de valor público em um sentido mais amplo (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016). O objetivo da interação entre usuários e provedores é produzir e entregar um serviço público pré-definido que, embora possa ser ajustado e aprimorado para atender às necessidades e demandas dos usuários, não tem como foco a inovação, expressa pelo desenvolvimento e realizações de ideias disruptivas (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016).

De forma geral, para Torfing; Sørensen e Røiseland (2016) a coprodução pode capturar um fenômeno conhecido do cotidiano e os usuários finais contribuem para a produção e entrega deste determinado serviço. Porém, não captura a tendência mais ampla no setor público de interação com a sociedade, onde uma diversidade de atores públicos e privados colaboram para encontrar e fornecer soluções inovadoras para problemas compartilhados e desafios (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016).

Inovação Social

O conceito de cocriação se relaciona em alguns aspectos com a noção de inovação social, porém, conforme Torfing; Sørensen e Røiseland (2016), é possível distinguir os conceitos. A inovação social captura a dimensão inovadora das tentativas de empreendedores sociais ao envolver os cidadãos locais na resolução criativa de problemas (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016). Mas, o termo é comumente definido como soluções inovadoras criadas por atores da sociedade civil, quando as necessidades e demandas não são atendidas pelo Estado (MULGAN et al., 2007).

Neste sentido, a inovação social é vista como a tentativa da sociedade civil de corrigir e complementar o setor público, que normalmente não desempenha um papel ativo (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016). Já a ideia relacionada ao conceito de cocriação é que ambos – sociedade e Estado – envolvem os diversos atores sociais com o objetivo de resolver problemas, desafios e tarefas de forma conjunta, fazendo com que o potencial inovador surja da interação entre diferentes atores que soluções compartilhadas, abandonando a zona de conforto, envolvidos em processos de aprendizagem mútua e transformadora (MEZIROW, 2000).

Governança Colaborativa

A governança colaborativa é comumente conceituada como um regime de governança onde um ou mais órgãos públicos envolvem diretamente as partes interessadas não estatais em um processo de tomada de decisão coletiva informal, orientada para o consenso deliberativo, visando fazer ou implementar políticas públicas ou gerenciar programas ou ativos públicos (ANSELL; GASH, 2008).

O conceito claramente define a colaboração como ferramenta para o alcance dos objetivos, e reconhece a importância da colaboração entre diversos atores, mas não aborda o potencial elo entre colaboração e inovação (SØRENSEN; TORFING, 2011) que desenham o conceito de cocriação.

Quadro 1: Resumo conceitos

ConceitoDefiniçãoObjetivoAtores
CoriaçãoProcesso em que diversos atores tentam resolver problema, desafio ou tarefa compartilhada por meio de uma troca construtiva de diferentes tipos de conhecimento, recursos, competências e ideias que aumentam a produção de valor público através de melhorias contínuas ou através de mudanças inovadoras (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016).  Criação de valor público através da inovaçãoDiversos setores da sociedade (Estado, setor privado, sociedade civil etc.)
CoproduçãoProcesso interativo por meio das quais os provedores e usuários de serviços públicos aplicam seus diferentes recursos e capacidades na produção e entrega de determinado problema pré-definido no serviço público (LUSCH; VARGO, 2006).Entrega ou melhoria de determinado serviço públicoUsuários e provedores do serviço
Inovação SocialSoluções inovadoras criadas por atores da sociedade civil, quando as necessidades e demandas não são atendidas pelo Estado (MULGAN et al 2007).Atender as demandas não atendidas pelo EstadoSociedade civil
Governança ColaborativaRegime de governança onde órgãos públicos envolvem diretamente as partes interessadas não estatais em um processo de tomada de decisão coletiva informal, orientada para o consenso deliberativo e que visa fazer ou implementar políticas públicas ou gerenciar programas ou ativos público (ANSELL; GASH, 2008).Implementar políticas públicas ou gerenciar programas ou ativos públicoPartes interessadas dentro dos diversos setores da sociedade
Fonte: Elaborado pela autora, 2020.

Assim, a cocriação complementa e transforma as formas tradicionais de pensar e praticar a governança pública e envolve uma interação entre atores públicos e privados na formação, e potencial renovação, de políticas públicas, regulamentações e serviços do que a noção de coprodução. Além disso, a definição de cocriação destaca o impacto potencial da interação colaborativa entre atores públicos e privados sobre a capacidade de promover novos e inovadores soluções para problemas intratáveis, podendo avançar na produção de valor público por meio do fortalecimento da participação democrática (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016). 

Porém, a cocriação só poderá preencher as lacunas da Nova Gestão Pública se sustentada por novos desenhos institucionais, novas formas de liderança pública e uma série de mudanças sistêmicas no setor público. Por fim, conclui-se que apesar das distinções conceituais e os desafios a serem superados, o objetivo geral dos termos que tratam da resolução dos problemas urgentes, é o de não é governar sozinho (TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2016).

Referências bibliográficas

Ansell, C., & Gash, A. (2008). Collaborative governance in theory and practice. Journal of Public Administration Research and Theory, 18, 543-571.

Bovaird, T., & Loeffler, E. (2012). From engagement to co-production: The contribution of users and communities to outcomes and public value. Voluntas, 23, 1119-1138.

Lusch, R. P., & Vargo, S. L. (Eds.). (2006). The service-dominant logic of marketing: Dialogue, debate, and directions. Armonk, NY: Scharpe.

Mezirow, J. (2000). Learning as transformation: Critical perspectives on a theory in progress. San Francisco, CA: Jossey Bass.

Mulgan, G., Tucker, S., Ali, R., & Sanders, B. (2007). What it is, why it matters, and how it can be accelerated. Oxford, UK: Skoll Center for Social Entrepreneurship.

Osborne, S. P., Radnor, Z., & Nasi, G. (2013). A new theory for public service management? American Review of Public Administration, 43, 135-158.

Sørensen, E., & Torfing, J. (2011). Enhancing collaborative innovation in the public sector. Administration & Society, 43, 842-868.

TORFING, Jacob; SØRENSEN, Eva; RØISELAND, Asbjørn. Transforming the Public Sector Into an Arena for Co-Creation: barriers, drivers, benefits, and ways forward. Administration & Society, 2019.




Júlia Viezzer Baretta
Administradora Pública. Acadêmica do Doutoranda do Programa de Pós-graduação acadêmico em administração UDESC/ESAG. Desenvolve pesquisas nas áreas de Gestão e Governança Pública. Acessar Lattes e LinkedIn.

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