Democratizar o Estado a partir da inovação: uma proposta de diálogo entre os estudos de inovação social e em serviços públicos

Nos últimos anos, as temáticas da inovação em serviços públicos e da inovação social vêm ganhando espaço tanto nas agendas de pesquisa como no âmbito das práticas. Nesse sentido, o objetivo deste paper é iniciar uma proposta de diálogo entre os trabalhos sobre inovação social a partir de uma perspectiva pragmatista (ANDION ​et al​, 2017) e sobre inovação em serviços públicos discutida a partir da Nova Governança Pública (OSBORNE, 2007) e das ideias de colaboração e design (ANSELL; TORFING, 2014) e criação de valor público (CROSBY; HART; TORFING, 2016).

A pluralidade conceitual e de abordagens dos trabalhos sobre inovação social leva diversos autores a preocuparem-se em defini-la. Para Bignetti (2011), a inovação social é definida a partir da aplicação de conhecimentos a necessidades sociais, utilizando-se da participação e da cooperação dos atores envolvidos no problema, para geração de novas soluções. Ao contrário do conceito de inovação tecnológica proposto por Schumpeter (1997), esse tipo de inovação não pressupõe a necessidade de uma inovação total, mas pode ser, também, uma nova forma de compor elementos já existentes ou uma “nova configuração de práticas sociais em determinadas áreas de ação ou contextos sociais” (HOWALDT, SCHWARZ, 2010, p. 21).

Outros autores, como Howaldt e Schwarz (2010), buscam esclarecer o que faz de uma inovação uma inovação social. Para isso, destacam três dimensões encontradas em diversos trabalhos: (a) satisfação de alguma necessidade humana ainda não atendida; (b) possibilidades, dentro das relações sociais existentes, de realizar essa satisfação, aumentando o nível de participação dos atores, especialmente os marginalizados; e (c) dimensão do empoderamento, isto é, promover o aumento das capacidades sociopolíticas e do acesso aos recursos essenciais – sejam eles políticos, humanos, financeiros, etc. – para melhorar a participação e a satisfação das necessidades humanas. Por ser considerada um elemento da mudança social, a inovação social tem o seu próprio valor como uma característica central, ou seja, deve ser considerada como uma forma adequada de enfrentar o problema proposto.

Trabalhos recentes voltam-se à pesquisa empírica e mudam a questão central do “como se define” para o “como ocorre” da inovação social. Trata-se de compreender os processos que levam à mudança no instituído para que se possa fortalecê-los. Dentre esses trabalhos, encontra-se o desenvolvido por Andion ​et al (2017). Para os autores, é necessário retomar trajetórias longas de (re)definição dos problemas públicos, acompanhando os campos de experiência que se colocam e lançando olhar sobre as consequências desse processo na mudança do social.

A perspectiva teórica que orienta esse trabalho sobre inovação social têm sua base no trabalho de John Dewey (2004), onde também reside a chave para o diálogo que se busca estabelecer. Para o autor, confrontados com as consequências de situações que percebem como problemáticas, os atores ordinários iniciam um processo investigativo a fim de compreender melhor a situação, buscar responsáveis e mobilizar parceiros na tentativa de controlar tais consequências (DEWEY, 2004). Esse coletivo que passa a se mobilizar é chamado ​público.​ Daniel Cefaï (2017) argumenta que nesse processo de ​investigação pública​, os públicos problematizam e publicizam em meio a situações de cooperação e disputa, o que faz emergir ao mesmo tempo um problema público e seu público. Nesse processo, o público busca construir e adquirir conhecimento, na medida em que esse conhecimento lhe dá poder de ação.

No entorno dos problemas públicos que emergem apresenta-se uma arena pública. Esta constitui “um conjunto organizado de acomodamentos e competições, de negociações e arranjos, de protestos e consentimentos, de promessas e engajamentos, de contratos e convenções, de concessões e compromissos, de tensões e acordos mais ou menos simbolizados e ritualizados” (CEFAÏ, 2017, p. 208). As arenas constituem-se como verdadeiros campos de experiência em que os próprios problemas se redefinem ao longo do tempo e se estabilizam formas de administrá-lo (CEFAÏ, 2017).

É nessa dinâmica em que os atores ordinários, mobilizados em redes, a partir de longas trajetórias de (re)definição dos problemas inseridas em campos de experiência, mudam, instituem e reinstituem o social (ANDION ​et al​, 2017). Essa dinâmica ocorre em processos constantes de experimentação cotidiana (ANSELL, 2012) e que podem constituir a base do exercício da cidadania que é fundamental para a inovação a partir da colaboração.

Mas em que ponto se encontra a possibilidade de diálogo entre as abordagens? Para Dewey (2004), um Estado só será democrático quando for, de fato, um aparelho de um grande público integrador que se reconheça a si mesmo e se outorgue a autoridade de definir as suas atribuições. Como os processos de (re)constituição dos públicos são constantes, para que o Estado seja esse aparelho, deve estar disposto a se reinventar e se experimentar continuamente para acompanhar as mudanças que ocorrem socialmente ao longo do tempo pela ação dos públicos, ou seja, as inovações sociais.

Sem essa interlocução do Estado com os públicos e o esforço contínuo de se reinventar a partir do que emerge dos processos democráticos do cotidiano, ele se torna uma carcaça que só serve a si mesmo e que representa a um público que já não existe mais (DEWEY, 2004). Nesse sentido, faz-se necessário que o Estado esteja em processo contínuo de inovação, não somente para melhoria da qualidade e eficiência dos serviços ou por contingências financeiras, mas para que seja, de fato, um Estado democrático. Para isso, são fundamentais desde inovações adaptativas, para respostas a demandas imprevisíveis que surgem no cotidiano (ROBERTS, 2018a) até inovações mais disruptivas, que tentam projetar situações indesejáveis do futuro que necessitam de respostas desde o presente (ROBERTS, 2018b). Além disso, as inovações em governança (MOORE; HARTLEY, 2010) tornam-se primordiais, dado que o conhecimento e os recursos para resposta aos problemas encontram-se nas redes, em um contexto interorganizacional (KINDLER, 2013).

Apesar de esclarecer sobre a necessidade de experimentação constante do Estado, Dewey tem pouco a dizer sobre o desenho institucional que o conduza para a democratização; não demonstra como desenhar instituições que reduzam a chance de engessamento, ou seja, como chegar às chamadas instituições pragmatistas. Nisso reside a contribuição dos estudos recentes sobre experimentalismo democrático (SABEL, 2012), em que se aproxima ciência e democracia (ANSELL, 2012), na busca por promover processos de investigação pública mais constantes e profundos que envolvam cada vez mais cidadãos comuns e especialistas agindo em conjunto (EVANS, 2000). Para Fung (2012), essa questão pode ser resolvida estudando extensivamente questões e problemas públicos visando propor formas mais adequadas de governança ou analisar e identificar as dificuldades centrais do processo de tomada de decisão política e coletiva para então explorar melhores alternativas.

A perspectiva da inovação em serviços públicos referida acima têm avançado de maneira significativa nessa direção. Ao invés de apostar na autonomia e motivação do administrador, visto em alguns casos como herói para o sucesso da inovação, essa concepção aponta para a colaboração em redes de aprendizagem mútua entre diversos atores em arenas constituídas para isso, em vistas de criar valor público (ANSELL; TORFING, 2014; CROSBY; HART; TORFING, 2016). Para que isso ocorra, é fundamental que os gestores públicos abram mão da simplicidade do controle, comum na realidade hierárquica das organizações públicas, em favor da complexidade da liderança nas redes (CROSBY; HART; TORFING, 2016).

Assim, é fundamental acompanhar e compreender as inovações sociais que ocorrem nas arenas públicas da cidade, para fortalecer e ampliar os processos de investigação pública e de co-construção do conhecimento (ANDION ​et al​, 2017), ou seja empreender esforços para a revitalização do público (DEWEY, 2004). Isso se dará pela ampliação da comunicação e da difusão do conhecimento (DIAS, 2010), pela aproximação entre ciência e democracia (ANSELL, 2012) e por uma educação que fomente o engajamento dos indivíduos em ações coletivas a partir das situações problemáticas do cotidiano (EVANS, 2000). Só assim, haverá um grande público que se reconheça ao ponto de incidir na (re)definição dos papeis do Estado (DEWEY, 2004).

Por outro lado, é preciso preparar a máquina governamental e os servidores públicos – em sentido deweyano – para que passe de uma organização hermeticamente fechada para uma instituição porosa, que se abra ao que emerge da sociedade e se coloque como espaço de diálogo para a consecução do bem público. Para isso, é necessário, como dito, abandonar a simplicidade do controle hierárquico para a complexidade da liderança na rede (CROSBY; HART; TORFING, 2016) e submeter-se à autoridade dos públicos. Dessa forma, o Estado passa a ser visto como uma arena para a co-criação do bem público, através da colaboração entre diversos atores para a inovação em serviços públicos (​TORFING; SØRENSEN; RØISELAND, 2019​). Dessa forma, com o diálogo entre os estudos, será possível unir as duas pontas e apontar caminhos para o aprofundamento da democracia.

Referências bibliográficas

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Autores




André Augusto Manoel
Bacharel em Administração Pública e Mestrando em Administração pela ESAG/UDESC. Integra Núcleo de Inovações Sociais na Esfera Pública (NISP) e o Observatório de Inovação Social de Florianópolis (OBISF), pesquisa sobre agricultura urbana, democracia e inovações sociais. Acessar Lattes.





Bárbara Ferrari
Bacharela em Administração Pública e Mestranda em Administração pela ESAG/UDESC. Integrante do grupo de pesquisa Politeia – Coprodução do Bem Público: Accountability e Gestão, pesquisa sobre orçamento público, participação e poder legislativo. Acessar Lattes.

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