Explorando a cocriação e seus efeitos em serviços públicos coercitivos

O setor público, assim como os demais setores da sociedade, busca adaptar-se às mudanças constantes intensificadas pelo desenvolvimento das TICs. Essa adaptação requer a adoção de estratégias baseadas na inovação para fazer frente aos problemas contemporâneos complexos e, sobretudo, atender às demandas dos cidadãos, usuários do serviço público.

A inovação, ao mesmo tempo em que pode estar associada a uma estratégia deliberada, é também um processo emergente de busca de solução de problemas, trazendo consigo múltiplas partes para a identificação de oportunidades para a criação de valor público. Envolve, assim, um processo de cocriação, cuja principal ferramenta é o design colaborativo (BARRUTIA; ECHEVERRIA, 2019).

A participação do usuário ou consumidor na cocriação é fundamental, já que utiliza do conhecimento tácito (ou sticky knowledge) que possui para melhorar o serviço existente ou para desenvolver um novo serviço. Este conhecimento pode ser explicitado através de ferramentas como brainstorming, entrevistas, reuniões de equipe, reconhecendo-se a postura ativa do usuário no processo, tanto na produção do serviço quanto na avaliação posterior (OSBORNE; BROWN, 2013).

Nestes termos, a cocriação substitui o monopólio do serviço público e a competição público-privada pela colaboração multi-atores, transformando, assim, a percepção que se tem do setor público, voltado para a abordagem dominante do serviço (TORFING; SORENSEN, 2016).

Ao analisar a abordagem dominante do serviço e sua inter-relação com a coprodução, Osborne e Brown (2013) destacam que assim como nos serviços de contratação voluntária, nos serviços públicos de natureza coercitiva o fenômeno se repete. Os serviços públicos de natureza coercitiva são aqueles nos quais o usuário é obrigado a fazer uso de tais serviços, como, por exemplo, os serviços penitenciários e de aplicação da lei e ordem.

Osborne e Brown (2013) baseiam-se nas conclusões de Corcoran (2011) em pesquisa sobre a institucionalização de serviços penais privados dirigidos por instituições de caridade no Reino Unido, e de Margetts (2009), que aponta que as tecnologias baseadas na Internet (particularmente aplicativos ‘Web 2.0’) são ferramentas facilitadoras da coprodução e cocriação, haja vista que os cidadãos podem participar diretamente no desenvolvimento dos serviços públicos, democratizando, assim o resultado da inovação. E, finalmente, de Fagan e Davies (2000) que apontam a participação do cidadão no policiamento comunitário, exercendo controle social como mecanismo de coprodução no serviço de segurança pública.

Entre os estudos que indicam a coprodução em serviços públicos de natureza coercitiva, destaco aquele levado a cabo por Corcoran (2011) voltado para os serviços penais.

Em que pese as diversas críticas à aparente contrariedade entre a marketização dos serviços penais e a missão das organizações de caridade voltadas para o apoio da comunidade carcerária, o principal argumento destas organizações ao participarem de licitações de serviços prisionais é que a gestão destes serviços públicos seria uma intervenção essencial da sociedade civil em face das falhas crônicas dos regimes prisionais existentes.

Nestes termos, seria garantido que os novos estabelecimentos penais fossem projetados objetivando a reabilitação e reinserção em vez de mera contenção. Assim, ao propor-se a gestão do sistema prisional com diferentes vertentes da política de governança do crime, incluindo iniciativas para promover parcerias de segurança da comunidade em níveis locais, a gestão processual e o estímulo da comunidade com base em suporte para infratores e vítimas, traria como resultado o desenvolvimento de serviços com foco no atendimento de forma participativa das necessidades do usuário/cidadão, estimulando a inovação (CORCORAN, 2011).

Nesta forma proposta, a coprodução com a participação do cidadão para o desenvolvimento do serviço público a ser prestado seria desenvolvido bottom-up em vez de top-down, ou seja, projetado em torno das necessidades das pessoas (usuário), e não das instituições que as atendem (governo).

A leitura do artigo de Corcoran (2011) é bastante instigante, já que é possível visualizar-se a participação ativa do cidadão usuário do sistema prisional privado em diferentes etapas de cocriação: desde o projeto e desenvolvimento para atender as necessidades do usuário, como a criação de grupos de apoio responsáveis pelo suporte aos convictos e suas famílias, a alocação de empregos temporários durante a progressão de regime, o apoio psicológico e o fortalecimento da governança penal, contando com o apoio de stakeholders e voluntários para o desenvolvimento de processos e tecnologias inovadoras que facilitem a reinserção social, como o uso de tornozeleiras eletrônicas.

O reconhecimento da cocriação desperta a curiosidade de perquirir-se sobre o tipo de inovação promovida pelas organizações de caridade voltadas para o gerenciamento de prisões privadas, concluindo-se que se trata de inovação orientada para a missão, já que a missão deste tipo de organização é voltada para a reabilitação e reinserção dos convictos na sociedade.

Atingindo-se o interesse coletivo, agrega-se valor público ao serviço prestado, sendo desprezível neste contexto a marketização do serviço público, entendendo-se que eventuais lucros das organizações de caridade retroalimentam o ciclo de investimentos para atingir o bem comum.

Referências bibliográficas

BARRUTIA, J.M; ECHEBARRIA, C. Drivers of exploitative and explorative innovation in a collaborative public-sector context, Public Management Review, 2019, 21:3, 446-472, DOI: 10.1080/14719037.2018.1500630.

CORCORAN, M. Dilemmas of institutionalization in the penal voluntary sector. Critical Social Policy. 2011: v.31, p. 30-52. DOI:10.1177/0261018310385438.

FAGAN, J.; DAVIES, G. Street Stops and Broken Windows: Terry, Race, and Disorder in New York City, 28 FordhamUrb. L.J. 457(2000). Disponível em https://ir.lawnet.fordham.edu/ulj/vol28/iss2/2. Acesso em 01/10/2020.

MARGETTS,H.Z. . The Internet and Public Policy. Policy & Internet, 2009, Vol. 1. 1. DOI: 10.2202/1948-4682.1029

OSBORNE, S.P. A service-influenced approach to public service innovation? In: OSBORNE, Stephen P.; BROWN, Louise. Handbook of innovation in public services. Cheltenham: Edward Elgar, 2013.

TORFING, Jacob; SORENSEN, Eva; ROISELAND, Asborn. Transforming the public sector into an arena for co-creation: barriers, drivers and ways forward. Administration and Society, v. 51, n. 5, p. 795-825, 2019.

Autora



Paula Dora Aostri Morales
Doutoranda em Ciência da Informação (PGCIN/UFSC), Mestre em Ciência da Informação (PGCIN/UFSC), Especialista em Segurança Pública e Cidadania (UnB). Aluna especial da disciplina Inovação no Serviço Público do Programa Acadêmico de Pós- Graduação em Administração da UDESC/ESAG. Delegada de Polícia Federal em SC. Acessar Lattes.

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