O cidadão como parceiro do processo de inovação no setor público: os desafios e avanços para a abertura dos tribunais de contas à sociedade

No campo da inovação no setor público, emerge um crescente debate acerca da identificação de estratégias para o enfrentamento dos desafios contemporâneos da Administração Pública, acompanhado de produções acadêmicas que, atentas a essas necessidades, se propõem a explorar diferentes abordagens e métodos de promoção da inovação dentro do próprio processo de políticas e serviços públicos.

O desenvolvimento desses estudos decorre, principalmente, do reconhecimento da insuficiência da perspectiva tradicional das políticas públicas para responder adequadamente aos chamados wicked problems – problemas que demandam a atuação do poder público e, por serem marcados pela complexidade, dinamismo, escala maciça, urgência e transversalidade, extrapolam as formas tradicionais de resolução.

Nesse contexto, Cavalcanti, Mendonça e Brandalise (2019) apresentam o design thinking como uma abordagem que, sem negar ou substituir a visão tradicional, agrega novas percepções, as quais, em diálogo com a visão anterior, objetivam contribuir tanto para a melhor compreensão dos problemas públicos, quanto para a construção de soluções governamentais mais efetivas.

Essa abordagem caracteriza-se, segundo os mencionados autores, por reconhecer as incertezas e a complexidade dos desafios públicos, por ter o foco no papel estratégico das pessoas (visão centrada no ser humano), por buscar a construção coletiva de soluções múltiplas (cocriação de soluções) e por propor a geração de aprendizado a partir de materialização de ideias e teste (experimentação).

Dentre os citados princípios que compõem o design thinking, é pertinente destacar o incentivo à cocriação, conceito profundamente abordado por Torfing, Sorensen e Roiseland (2016) e que consiste na participação colaborativa de múltiplos atores em todas as diferentes fases do processo de design, abrangendo desde o entendimento dos desafios e a criação de soluções até a implementação e o aprimoramento das políticas e serviços públicos.

Nesse processo de cocriação, dentre os múltiplos atores que o compõem, tem-se o cidadão, o qual, na abordagem do design thinking, tem um papel muito ativo no processo de políticas e serviços públicos, pois é visto não só como fonte de insights (entendimentos profundos sobre determinadas situações, indicando oportunidades de inovação), como potencial parceiro para a construção coletiva de soluções.

É interessante observar que a perspectiva do design thinking – embora mais ampla por envolver o processo de cocriação e por ser aplicada a políticas e serviços públicos – dialoga com a abordagem orientada a serviços, a qual considera a coprodução como elemento indissociável da entrega do serviço público, uma vez que a produção de qualquer serviço seria necessariamente o resultado de um intrínseco processo de interação entre o prestador e o consumidor, a ocorrer no momento da prestação do serviço, denominado de the moment of truth (OSBORNE, 2013).

Contudo, ao considerar o engajamento do cidadão e do usuário como elemento essencial para o processo de entrega de políticas e serviços públicos, surge um notório desafio: desenvolver métodos que não só permitam um profundo conhecimento da experiência dos usuários, mas também possibilitem o envolvimento desses atores no design de políticas e serviços públicos (TRISCHLER; SCOTT, 2016).

Trata-se de um desafio que assume especial relevância no âmbito do setor público, uma vez que, como asseveram Trischler e Scott (2016), a coprodução tem o potencial de conduzir a uma plataforma de inovação aberta e a melhorias contínuas do serviço, podendo gerar tanto o aumento da eficiência na prestação do serviço, como o desenvolvimento de soluções mais úteis e apropriadas para os usuários.

Por isso, tanto no design thinking, como no design de serviços, há uma forte preocupação de se coletar a experiência dos usuários das políticas ou serviços públicos, por meio de pesquisa de campo, de modo a proporcionar uma compreensão mais aprofundada sobre os comportamentos, as necessidades e as expectativas dos cidadãos.

Traçado um panorama geral acerca de algumas das abordagens de promoção da inovação dentro do processo de políticas e serviços públicos – design thinking, cocriação e design de serviços –, resta evidente o destaque que as citadas perspectivas atribuem ao cidadão e ao usuário, que passam a ser vistos como parceiros do processo de construção de novas possibilidades.

Transpondo tais conhecimentos para o exercício da função de controle externo pelos tribunais de contas, verifica-se que esses órgãos de controle ainda são muito resistentes à participação social, fato que contribui para o insulamento dessas instituições e para seu distanciamento da sociedade, dificultando a coprodução do controle e, por consequência, o desenvolvimento de inovações colaborativas que possibilitem o desenvolvimento de fiscalizações mais próximas das necessidades e das expectativas dos cidadãos.

De acordo com Rocha, Zuccolotto e Teixeira (2020), os tribunais de contas, de maneira geral, têm fraco nível de permeabilidade à sociedade, uma vez que não oferecem oportunidades ou mecanismos para que a sociedade possa efetivamente participar: no processo de designação de ministros/conselheiros; no processo de elaboração do plano de auditoria ou mesmo de participação durante a realização das auditorias; e no acompanhamento do cumprimento pelos gestores públicos das determinações e recomendações.

Não obstante predomine o distanciamento social dos tribunais de contas, é possível verificar algumas iniciativas que buscam aproximar os órgãos de controle externo da sociedade. É o caso Tribunal de Contas do Estado do Paraná, que está realizando, perante o público externo, a Pesquisa de Percepção 2020, na qual é possível indicar o grau de satisfação com a atuação do TCE-PR, incluindo atendimento, agilidade nos julgamentos, qualidade, transparência e facilidade de compreensão das informações divulgadas, bem como sugerir as prioridades da fiscalização e os principais resultados que o Tribunal pode oferecer à sociedade neste momento de pandemia da Covid-19.

Desse modo, embora sejam observados alguns avanços e iniciativas, ainda é necessário um amplo movimento de abertura dos tribunais de contas à participação dos cidadãos para que seja possível a aplicação de abordagens que promovam inovações dentro do processo de coprodução do controle e, por conseguinte, produzam soluções conjuntas e mais apropriadas para as demandas da sociedade.

Referências bibliográficas

CAVALCANTI, Pedro; MENDONÇA, Letícia; BRANDALISE, Isabella. Políticas públicas e design thinking: Interações para enfrentar desafios contemporâneos. In: CAVALCANTI, Pedro (org.) Inovação e políticas públicas: superando o mito da ideia. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). 1ª ed., 2019. Brasília. Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/190530_livro_inovacao_e_politic as_publicas.pdf. Acesso em 23 set. 2020.

OSBORNE, Stephen P. A service-influenced approach to public service innovation? In: OSBORNE, Stephen P.; BROWN, Louise. Handbook of innovation in public services. Cheltenham: Edward Elgar, 2013. Cap. 4.

PARANÁ. Tribunal de Contas do Estado do Paraná. O TCE-PR quer saber sua opinião: responda à Pesquisa de Percepção 2020. Disponível em: https://www1.tce.pr.gov.br/noticias/o- tce-pr-quer-saber-sua-opiniao-responda-a-pesquisa-de-percepcao-2020/8293/N. Acesso em 23 set. 2020.

ROCHA, Diones Gomes da; ZUCCOLOTTO, Robson; TEIXEIRA, Marco Antonio Carvalho. Insulados e não democráticos: a (im)possibilidade do exercício da social accountability nos Tribunais de Contas brasileiros. Revista de Administração Pública, v. 54, n. 2, p. 201–219, 2020. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034- 76122020000200201. Acesso em 23 set. 2020.

TORFING, Jacob; SORENSEN, Eva; ROISELAND, Asborn. Transforming the public sector into an arena for co-creation: barriers, drivers and ways forward. Administration and Society, v. 51, n. 5, p. 795-825, 2019.

TRISCHLER, J; SCOTT, D.R. Designing public services: The usefulness of three service design methods for identifying user experiences. Public Management Review, v. 18, n. 5, p. 718-739, 2016.

Fonte das imagens

Imagem 1. Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/pessoas-de-discuss%C3%A3o- reuni%C3%A3o-5069845/

Imagem 2. Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/coment%C3%A1rios-pesquisa-nps- satisfa%C3%A7%C3%A3o-3709752/

Imagem 3. Disponível em: https://unsplash.com/photos/5fNmWej4tAA

Autora



Anna Clara Leite Pestana
Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Advogada e Auditora Fiscal de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE/SC). Acessar Lattes e LinkedIn.

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