Inovações Democráticas: alternativas emergentes para ampliação da participação social nas políticas públicas diante da pandemia da COVID -19

Freia a Curva ou Segura a Onda (no Brasil) é o nome da plataforma on-line, criada no contexto da pandemia da Covid-19, onde voluntários, empreendedores, ativistas, organizações sociais, criadores e laboratórios de inovação começaram a reunir esforços para o combate aos problemas causados pela pandemia, diretamente nos territórios (POGREBINSCHI; ROSS, 2021). Trata-se de um guia de iniciativas cidadãs de enfrentamento do coronavírus, inovação social e resiliência cívica em tempos de pandemia (SEGURA A ONDA, 2020).

Este é apenas um dos 409 exemplos de inovações já criadas no Brasil, o maior laboratório de experimentação democrática do mundo, sendo 47% delas com deliberação. Mesmo assim, a democracia na América Latina sempre foi desafiada, sobretudo, pelos índices de desigualdade social, além de altos índices de crime e violência. Nesse contexto, cerca de metade das inovações democráticas na América Latina foram criadas para tornar os governos mais responsivos e responsáveis, enquanto que pouco mais de um terço buscou combater a desigualdade. Ademais, apenas 24% das inovações democráticas na América Latina não permitem a participação dos cidadãos, ou seja, a Sociedade Civil está aumentando seu papel na inovação democrática na América Latina (POGREBINSCHI, 2021).

Inserido neste contexto, ao pensar na participação da sociedade nas políticas públicas, aqui considerando a visão habermasiana de sociedade, que compreende uma gama de atores que, juntos, deliberam na esfera pública (VOLPATO DUTRA, 2006), este texto quer chamar atenção para um tipo específico de inovação democrática: as ferramentas digitais de participação cidadã nas políticas públicas, destacando a experiência da plataforma Segura a Onda, que claramente é uma campanha digital que mobiliza iniciativas e arrecada recursos dos mais variados atores (SEGURA A ONDA, 2020), bem como a sua relação com os conceitos de governança pública, co-produção, co-criação, e colaboração.

Para dar conta dos objetivos, este texto inicia falando sobre o nível macro da implementação de políticas públicas, destacando o conceito de governança pública, que denota pluralismo e uma mudança no papel do Estado na solução de problemas públicos. Indo além das fronteiras organizacionais, denota a mudança de estruturas e, de certo modo, valores ideológicos e políticos e destaca o papel da política na implementação de políticas públicas (SECCHI, 2009), ou seja, são mudanças nas formas institucionais de governo, na forma de organização e planejamento para a entrega dos serviços, mudanças que ultrapassam limites organizacionais e critérios técnicos (MOORE; HARTLEY, 2010). Logo, para entender a complexidade do contexto, é necessário partir do entendimento sobre co-produção e co-criação do bem público, essenciais para promover inovações colaborativas.

Ao olhar para o mundo atual, observa-se que a sociedade contemporânea denota a necessidade, cada vez maior, de promover inovações na implementação de políticas públicas em nível de governança, ou seja, a colaboração é essencial neste conceito de governança pública, pois problemas complexos exigem a construção colaborativa de soluções. Desse modo, para que se possa promover inovações em nível de governança e mudanças nas estruturas para a melhoria dos serviços públicos, a governança colaborativa pode co-criar valor público (ANSELL; TORFING, 2021). É aí que entra o conceito de co-criação ou a visão de co-produção transcendendo a relação entre prestador e usuário.

Ao analisar os conceitos de co-produção e co-criação do bem público, observa-se que há uma semelhança entre os dois conceitos que deve ser destacada: as duas compartilham a ideia de colaboração entre diferentes atores para a produção de resultados (BRANDSEN et al., 2018 apud ANSELL; TORFING, 2021). Entretanto, cabe destacar uma diferença também considerável entre os dois conceitos, enquanto a co-produção, para alguns autores, relaciona implementadores e beneficiários das políticas públicas, em um caráter hierárquico, a co-criação é mais abrangente, envolvendo uma infinidade de atores públicos e privados, numa relação horizontal, realizando um esforço colaborativo para definir problemas comuns e ir em busca de soluções viáveis (TORFING et al., 2019 apud ANSELL; TORFING, 2021). Em outras palavras, a co-criação, ou, até mesmo, a co-produção, para alguns autores, envolve uma troca de ideias entre os mais variados atores, sejam eles públicos ou privados, através de uma troca construtiva entre os diferentes tipos de conhecimento, recursos, competências ou ideias, visando melhorias na compreensão e alternativas para a resolução dos problemas públicos (GESTEL; GROTENBERG, 2021). Por isso, é necessário dar aos problemas complexos uma interpretação complexa, conforme pode ser observado no conceito de co-criação.

Entretanto, garantir a colaboração de diversos atores na implementação de políticas públicas a na resolução de problemas complexos não requer mudanças simples. Para conseguir alcançar um consenso sobre problemas comuns, muitas vezes é necessário alterar a própria dinâmica relacionada a determinado serviço público. Não basta pensar práticas inovadoras, trazer atores diversos, pensar para além dos recursos públicos. É necessário fazer tudo isso, mas ir além, ultrapassar as fronteiras do Estado e de determinado setor, pensar novos recursos financeiros, materiais e humanos, alterar a lógica de resolução dos problemas, ir a fundo, pensando em diferentes instrumentos e atores para atingir os objetivos (MOORE; HARTLEY, 2010). É aí que entra a relação entre governança pública, co-criação e colaboração, bem como sua necessidade para ampliação e qualificação das inovações democráticas.

Não se pode mais pensar em participação da Sociedade Civil nas políticas públicas olhando apenas para as práticas de gestão participativa, como os conselhos, conferências e orçamentos participativos. A pandemia da covid-19 tornou necessária e urgente uma mudança que vai além das práticas de participação, uma mudança na lógica do processo participativo, fiscalizador e mobilizador de recursos. Uma mudança em nível de governança. A plataforma Segura a Onda é apenas um exemplo de ferramenta digital de participação e mobilização de recursos não apenas pelo Estado, mas por parte da Sociedade Civil, em seus variados formatos.

E falar da resolução de problemas complexos a partir do consenso e deliberação através do diálogo entre atores distintos é falar de uma inovação colaborativa. Portanto, qual a relação entre estas ferramentas digitais e os conceitos de co-criação, governança pública e colaboração? A necessidade cada vez maior de utilizar ferramentas mais complexas e colaborativas para a melhoria dos serviços (ANSELL; TORFING, 2021) deixa clara a necessidade de ampliar a visão sobre a forma como as relações entre Estado e Sociedade Civil acontecem, na tentativa de aprimorar, cada vez mais, a prestação de serviços públicos, promovendo inovações em nível macro e através de construções colaborativas.

Aqui entram os conceitos de governança pública, colaboração e inovação e a necessidade de construção de plataformas gerativas, que fomentem a geração de ideias pelos mais variados atores, destacando a ascensão das plataformas digitais, plataformas estas que podem ser tanto para inserção de ideias quanto para debate, a depender do problema a ser resolvido (ANSELL; TORFING, 2021).

Portanto, as ferramentas digitais foram escolhidas como exemplo para fazer a relação entre co-criação, colaboração e governança pública porque é na internet que são impulsionadas grandes mudanças, que podem ser promovidas pelos mais variados públicos. Estas mudanças rompem fronteiras organizacionais, mobilizam diferentes tipos de recursos, reunindo as ideias de diversos atores para promover uma transformação produtiva. Produtiva porque as ferramentas digitais estão sendo utilizadas neste texto como exemplos de plataformas gerativas, que não influenciam, mas que possibilitam a discussão, geração e aplicação de ideias através de processos colaborativos distintos, inseridos em uma sociedade em rede (ANSELL; TORFING, 2021).

No caso brasileiro, cabe destacar a plataforma Segura a Onda, mas este texto quer trazer uma reflexão final que também chama atenção para as práticas tradicionais de gestão participativa, como os conselhos e conferências, que, em grande parte, aderiram ao formato on-line diante da pandemia, o que por si só não pode ser considerado uma inovação, mas é interessante acompanhar que caminho irão seguir, uma vez que, dado o contexto de pandemia, a participação digital é uma tendência, não apenas devido ao isolamento, mas porque mostrou-se como uma possibilidade para maior inclusão de autores diversificados e diminuição dos reflexos da desigualdade social brasileira na participação. Portanto, este é um caminho interessante a ser observado (POGREBINSCHI, 2021).

Referências bibliográficas

ANSELL, C; TORFING, J. Public innovation through collaboration and design. New York: Routledge, 2014

ANSELL, C; TORFING, J. Co-creation: the new kid on the block in public governance. Policy & Politics, v. 42, n. 2, p. 211–230, Policy Press, 2021.

MOORE, M; HARTLEY, J. Innovations in governance. In: OSBORNE, S. P. The New Public Governance?: ​Emerging perspectives on the theory and practice of public governance. New York: Routledge, 2010. p. 52-71.

POGREBINSCHI, T.; ROSS, M. Inovações democráticas na América Latina. REVISTA DEBATES, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 33-63, jan./abril 2021. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/debates/article/viewFile/112490/61548. Acesso em: 30 ago. 2021.

POGREBINSCHI, T. Trinta Anos de Inovação Democrática na América Latina. Latinno – Inovações para a democracia na América Latina. Balanço final. Berlim: WZB Berlin Social Science Center, 2021. Disponível em: https://www.econstor.eu/bitstream/10419/235222/1/Full-text-report-Pogrebinschi-Trinta-Anos-de.pdf. Acesso em 29 ago. 2021.

SECCHI, L. Modelos organizacionais e reformas da Administração Pública. RAP, Rio de Janeiro, v. 43, n. 2, p. 347-369, mar./abr. 2009.

SEGURA A ONDA. Página inicial. [2020]. Disponível em: https://seguraaonda.com.br/. Acesso em: 30 ago. 2021.

VAN GESTEL, N.; GROTENBERG, S. Collaborative governance and innovation in public services settings. Policy & Politics, v. 49, n. 2, p. 249–265, 2021.

VOLPATO DUTRA, D. J. Da função da sociedade civil em Hegel y Habermas. Utopìa y Praxis Latinoamericana. v. 11 n. 35 Maracaibo dic. 2006.

Autora



Bruna Hamerski
Bruna é graduada em Administração pela UFRGS, com Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em Ciência Política, pela PUC-RS e estudante de Doutorado em Administração na UDESC. Suas pesquisas têm tido como foco o Controle Social das Políticas Públicas, mais especificamente, a participação cidadã. Acessar Lattes.

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